Canto I
O FAROL E A TRAVESSIA DO CANAL
O farol de uma doença incurável, feito o câncer
Anuncia experiências em estreitos canais dolorosos
Que nos arrastam e nos debatem em suas margens
Feitas de pontiagudos diagnósticos rochosos
Desde o pacífico oceano da vida saudável
Em que até então velejamos em suaves ondas de calmarias
No rumo certo de um grandioso horizonte ensolarado
Até o agitado oceano do instinto de sobrevivência
Em que se rema contra a correnteza, as ondas e o horizonte
E contra o rumo certo do grande final de tudo o que é mortal
O farol das doenças incuráveis dividem a vida em dois:
A alegre naturalidade do antes
E a angustiante resignação do depois.
Depois da visualização do sinal do farol
Quer seja do Panamá, do Suez ou da Alexandria
Ou mesmo deste mitológico farol do Além
Limite entre o aquém e o nada
Com suas corredeiras incontornáveis para o abismo
Só nos resta a filosófica atitude estóica
De assumirmos com humana altivez o leme
E usufruirmos ao máximo o restante da travessia
Por mais que o canal se estreite (enquanto não se geme)
E por mais que a sua vista fique sombria.
18/09/2007
Canto II
A BESTA E O APOCALIPSE NOW
PSA
DIAGNÓSTICO
GLEASON
ÂNUS
NEOPLASIA
CÂNCER
PRÓSTATA
GRAU
PERCENTAGENS
BIÓPSIA
ONCOLOGIA
RISCO
MALÍGNO
TRATAMENTOS...
24/09/2007
Canto III
DAY AFTER APOCALIPSE
O primeiro dia
Do resto da minha vida
Foi de adequações
Do anúncio oficial
Da sentença fatal
Numa forma racional, sem emoções
E com lágrimas represadas em público
Num cansaço psicológico e púdico
Com o corpo doído de ossos moídos
De suportar pessoalmente a finitude humana
The day after apocalipse
É feito do contágio da notícia da praga
Disseminando uma tristeza comovente
Que de boca em boa entre a minha gente vaga
De forma controlada, gradual e defensiva
Que propicie um recomeçar sem crises depressivas
De modo a vivermos o resto de nossas vidas
Compartilhando a alegria de estarmos juntos
Eu e os meus, com a nossa sorte e azares
Aqui e agora entre amigos, amores e familiares
Ensinando e aprendendo a dizer adeus.
25/09/2007
Canto IV
SECOND LIFE HIPER-REAL
No segundo dia do que restou da minha vida
Com um nó na garganta que se engole e retorna
Apertando o peito com sufocados suspiros
E os olhos com incontroláveis piscações lacrimejantes
A sentença já nem parece tão fatal
Pois talvez nem perpétua a chaga seja
Sendo até possível haver o retorno ao oceano de vida saudável
Pelo mesmo canal de pontiagudos diagnósticos rochosos
Com a detonação certeira do farol sinalizador da neoplasia
No segundo dia do resto de nossas vidas
Passamos a viver uma segunda vida com hiper-realismo
Onde cada detalhe do dia, da paisagem e cada pessoa
Ganha especial significação e transcendental poesia
Pela consciência de que o acaso definirá o real e a fantasia
Após todos os tratamentos e cirurgias em defesa da vida e da salvação
Distinguirá da mera esperança a verdade imposta pelo determinismo
Para só então podermos voltar a esquecer que o destino afundará a nossa canoa
Por já sabermos que não é agora, de câncer, mas depois, de velhice ou não...
Ou não: a correnteza é a incontornável e não perdoa a vida que nela se escoa.
26/09/2007
Canto V
A GUERRA DO TERCEIRO DIA
No terceiro dia dos restantes da gente
Após ter batido com a besta de frente
O monstro de sete cabeças virou um moinho
Um obstáculo a ser removido do caminho
Um alvo de guerra neste quixotesco enfrentamento
Que exige perícia e rapidez nos movimentos
O terceiro dia desta andança de triste figura
Tocou de decidir o local, a data e a postura
E encontrar um escudeiro treinado em resgates fálicos
Para operar como um franco atirador cirúrgico e cefálico
Um especialista que inspire confiança, domínio e tino
Nas mãos de quem, cegamente, vou apostar a sorte do meu destino...
27/09/2007
Canto VI
TIRO SECO MISERICORDIOSO
Ainda vivo naturalmente e saudável
Sem a ajuda de medicamentos contínuos...
Esta é a minha principal matéria prima em fluxo
Na fabricação dos meus atuais poemas
Migrando do formalismo para o fatalismo russo
Na tensa expectativa de um mal possivelmente curável
Ainda vivo o gozo da ejaculação líquida
Na fabricação do meu prazer amável
Mas já ouço longinquamente os seus ecos
Nesta inexorável migração para os gozos de tiros secos
Na erétil expectativa do universo todo conspirar favorável.
13/10/2007
Canto VII
MOINHOS DE VENTO
Com uma bagagem pra viagem rápida
E reservas confirmadas de estadias na pousada
Fui rumo ao ho(spi)tel Moinhos de Vento
Como quem vai ao spa descarregar as energias negativas...
Mas depois do procedimento de radical descarga prostática
Conheci a náusea anestésica do entre o ser e o nada
E retornei feliz por estar em casa, apesar dos culhões roxos
E da sonda com uma sacola de mijo ensangüentado a tiracolo
Consciente de ser um paciente que aguarda o novo ciclo de sua saga...
23/11/07- 27/11/07
Canto VIII
CONVALESCENÇA
Convalescença é hibernar...
É ficar sentado olhando pela janela
O azul monótono do céu sem nuvens
Hipnotizado por horas a fio pela luz do dia
Sem querer se ocupar com atividade alguma
Convalescença é não agir...
É simplesmente viver cada momento
Com todas as energias concentradas no vital
Pois ser um paciente é ter paciência oriental:
Convalescença é o apogeu da respiração.
29/11/07
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